Eu fazia a entrevista dos candidatos ouvintes que iriam
trabalhar conosco.
Uma das primeiras candidatas era jovem, sabia Libras
razoavelmente e estava bastante disposta a aprender. Respondeu todas questões
com naturalidade, informou que fazia curso de Libras em uma entidade de surdos.
Porém, ela era evangélica e acreditava que os surdos
precisavam ser salvos.
Trabalhou conosco apenas os três meses de experiência.
Porque um dia, quando estávamos em reunião, a portas fechadas, ela adentrou a
sala e diante dos diretores atônitos, colocou um papelzinho para todos. Era um
convite para o culto evangélico. E ainda cobrou:
- Não deixem de comparecer, tá?
Mais tarde, fui eu quem teve que lhe repreender:
- Você não pode entrar na sala quando estamos em reunião, a
não ser que seja algo extremamente importante!
- Você não gosta de Jesus, Sr. Jairo?
- Não tem nada a ver com Jesus. São regras que se seguem no
ambiente de trabalho.
- Está bem. Mas eu espero que o senhor compareça no culto
hoje.
- Jesus!! – mas eu disse baixo o suficiente para ela não ouvir.
Como ela não parava de falar no salvamento dos “pobres
surdos”, insistindo todos os dias que deveríamos participar dos cultos, foi dispensada ao
término da experiência.
Um jovem, bastante humilde, se apresenta.
Inicio a entrevista:
- Como é seu nome?
- Marcelo.
- Marcelo, você já trabalhou com surdos?
- Não.
- Tem contato com surdos?
- Eu conheço o mudinho lá do bairro. E ajudo muito ele para
conseguir uns bicos. Limpar quintal, ajudar em mudanças, bater laje.
- Mudinho?
- É, ele não fala nada. Não escuta nada também. O senhor não
é mudo?
- Não... – percebi o intérprete segurando o riso na mesa mais afastada – Estou aqui falando com você, não é mesmo? Mas, eu sou totalmente surdo.
- O mudinho lá do bairro também é surdo como uma porta. A
gente grita e ele não escuta nada. O senhor escuta um pouco, né? Eu estou
falando e o senhor está escutando tudo!
- Não, não. Não estou escutando. Estou lendo seus lábios.
- Nossa! Como o senhor faz isso?
- É uma característica de alguns surdos. – eu estava
sorrindo – Você sabe como trabalhará conosco aqui?
- Não sei não, senhor! A moça – a secretária que ia sair -
falou que aqui tem muitos mudinhos. Atender o telefone, ajudar o senhor e os
outros mudinhos.
- Você sabe alguma coisa de Libras? – e diante da expressão
de confusão dele, acresci – A língua de sinais dos surdos.
- Só o básico. Igual eu falo com o mudinho lá do bairro.
- O básico? Qual é o básico que você sabe?
- “Comer”, “beber”, “trabalhar” – retirou o suor da testa
com o indicador – “fumar”, “certo” – fez o sinal de positivo – “errado” – sinal
de negativo – e “levar ferro” – e fez o tradicional “top-top-top” (a mão aberta
batendo na outra em forma de “o”)
- Está bom, Marcelo. Vou conversar com os outros colegas e
qualquer coisa, “a moça” liga para você, está bem?
- Está, Sr. Jairo. Quando eu começo a trabalhar?
- Tem outras pessoas para entrevistar ainda. Agradeço sua
boa vontade em comparecer aqui.
Importante: os sinais utilizados pelo jovem não são sinais
básicos de Libras. Alguns são considerados mímica. Outros são considerados
classificadores. Muitos dos sinais de Libras são oriundos da mímica referente
ao ato, como beber, comer e fumar. Mas, o sinal de trabalhar já é bem diferente
do classificador utilizado pelo jovem. O gesto obsceno é gesto obsceno,
independente se utilizado por surdos ou não.
Uma candidata de mais idade. Ao contrário dos demais
candidatos, desta vez eu que a tratava com deferência.
- Sra. Matilde, a carteira de trabalho da senhora indica que
trabalhou muitos anos como secretária – e numa grande empresa mineira. – A senhora
já trabalhou com surdos?
- Não, mas nos últimos dois anos trabalhei em uma APAE,
lidando com deficientes.
- Não consta na sua carteira de trabalho.
- Foi um trabalho mais para voluntário que contratual.
Recebi pagamentos como autônoma.
- Lidou com surdos?
- Alguns...
- Sabe alguma coisa de Libras? Porque eu leio nos lábios e
tenho facilidade de conversação, mas a maioria com quem a senhora lidará, não.
- Não sei, não. Mas aprendo fácil. – e no momento seguinte
eu não percebi a mudança de quem entrevistava quem – Você tem filhos, jovem?
- Sim, tenho dois meninos.
- Que bom. Os filhos são uma coisa muito importante na vida,
não é mesmo? Porque você ficou surdo?
- Eu tive meningite com 12,5 anos. A sequela foi a surdez
bilateral profunda.
- Os outros também são surdos?
- Sim. Alguns em menor ou maior grau de surdez.
- Essa é sua sala?
- Sim! – respondi, estranhando a pergunta.
- É que aqui tem uma corrente de ar frio. Você deveria
fechar a janela ou usar um agasalho.
- Obrigado. – percebendo o desvio da conversação, voltei à
entrevista – A senhora nos auxiliará, principalmente, com telefonemas,
atendimento ao público e a diversos outros surdos.
- Pode ficar tranquilo. Tenho grande experiência. Saberei
cuidar de todos vocês.
- Está bem... – mas eu não fiquei tranquilo. Aquele “saberei
cuidar de todos vocês” parecia muito mais a frase de uma mãe.
Observando a Sra. Matilde, com sua face rechonchuda, sorriso
agradável, óculos na ponta do nariz, o cabelo grisalho adornado com um
caprichado coque, parecia estar diante de uma mãezona, que realmente cuidaria
de nós. Senti vontade de rir. Já imaginava eu chegando gripado e a Sra. Matilde
indo preparar um chazinho de limão.
Tanto o Marcelo como a Sra. Matilde, não foram contratados.
Os nomes foram trocados, por motivos óbvios.
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