Dois grandes amigos de infância e adolescência eram
atleticanos. Talvez por isso, nunca fui partidário das brincadeiras envolvendo
as torcidas, preferindo muito mais a discussão clara e objetiva, envolvendo o
jogo. A.C. e E.P. eram atleticanos ferrenhos e muitas vezes eu estava junto a eles,
acompanhando os clássicos, no rádio. Dificilmente um clássico era
televisionado. Ocorria quando os ingressos se esgotavam e a tv entrava com a
transmissão ao vivo, de surpresa. Ao lado dos meus amigos, ficava aguardando
que me informassem gols ou lances capitais. Mas, eles eram torcedores do
Atlético e os comentários eram parciais:
- O Galo está atacando direto. O Cruzeiro está todo recuado.
- O Galo está jogando bem.
- Quase gol do Galo.
Vibravam com os lances de perigo na área cruzeirense, momento
que eu pensava que tinha sido gol a favor do Atlético. E quando o gol realmente
ocorria eu tinha que aguentar os dois pulando feito doidos, gritando “Galôôôô”.
Quando era gol do Cruzeiro, eu nem vibrava. Eles demoravam a informar que foi
gol do Cruzeiro. Ficavam secando a validação:
- Não valeu. Vai anular. Que isso?!?! Roubado.
Eu perguntava:
- Gol de quem?
- Gol do Cruzeiro. – respondiam, com a cara emburrada.
Os dois sabiam escrever com o alfabeto manual dos surdos em
velocidade incrível (lembrando que na época ainda não existia a denominação
Libras).
Acompanhamos juntos a decisão de 1977, quando o Cruzeiro
tinha um time abaixo da média e o Atlético estava com os craques selecionáveis,
Toninho Cerezzo, Reinaldo, Paulo Isidoro, Éder Aleixo. O Cruzeiro foi
tetracampeão mineiro (1972 a 1975) e a sequência foi interrompida em 1976, com
o Atlético sendo campeão. A decisão de 1977 começou com o Atlético vencendo o primeiro jogo por 1x0. A. e E. já comemoravam o título, pois o Atlético
precisava de um empate no jogo seguinte. Só que no segundo jogo, Revetria
marcou três. O Atlético precisava do empate para ser campeão e chegou a fazer
dois. A cada lance em que o Atlético quase empatava a partida os dois pulavam.
E eu ficava interpretando as expressões faciais deles. Eles só me passavam o
que interessava a eles. Rádio é mesmo uma coisa inútil para os surdos! Não é possível descrever o martírio que era desejar saber o que ocorria no jogo e compreender perfeitamente que o aparelhinho ali descrevia todas as situações. Ainda quando ouvia escutei alguns jogos pelo rádio, junto à minha mãe (que era apaixonada com o Formiga Esporte Clube e a Seleção Brasileira). Portanto, eu tinha plena consciência do que era narração de um jogo. E como meus amigos eram atleticanos, no momento em que eles prendiam a respiração, ficavam imóveis, de olhos arregalados e preparando para gritar e pular, eu sabia que o Atlético estava atacando com perigo de gol. Claro que isso não acontecia quando era o Cruzeiro que atacava, muito menos quando o Cruzeiro fazia gol.
- Quase gol do Galo!
- Passou perto! Vai empatar.
Não empatou. Teríamos um terceiro jogo. Bons tempos em que
muitas decisões eram assim: venceu o primeiro jogo, perdeu o segundo, um
terceiro jogo era realizado (a primeira Libertadores que o Cruzeiro conquistou também teve um terceiro jogo em campo neutro).
O terceiro jogo foi televisionado. Só o A. estava assistindo
comigo. Ele não tinha tv em casa. Diante da tv foi minha vez de pular e vibrar.
O Cruzeiro foi campeão, 3x1. O A. contava para os nossos amigos:
- Não dá para assistir jogo com o Jairo. Fica gritando feito
doido. E sapateando na cadeira. – sofá era um móvel caríssimo para os nossos
padrões financeiros à época.
Mas, eu ria e dizia:
- E não dá para acompanhar jogo no rádio com você. Fica só
falando do Galo, quase gol do Galo, o Galo está atacando, pressão total do
Galo. Parece que o Cruzeiro nem está jogando.
Mas, a amizade era muito maior que a rivalidade clubística e no clássico seguinte lá estávamos nós novamente, ao lado de um rádio.
Muitas vezes acompanhamos o campeonato brasileiro cada qual
com sua tabela da revista Placar. Eu ficava perdido com os resultados de muitos
jogos. Eles ouviam os resultados no rádio e me passavam. Coleção de reportagens
sobre o Atlético ou sobre o Cruzeiro, eu e o E. pegávamos de revistas antigas.
Se encontrasse alguma revista velha, principalmente a Placar, com alguma
conquista de campeonato, levava para ele e vice versa. Alguns amigos achavam
estranho quando eu estava com revista ou jornal com reportagem sobre o
Atlético. Perguntavam desconfiados:
- Mas você não é cruzeirense?
Eu ria, informava que era para um amigo atleticano.
Também estranhavam o E. na mesma situação, com reportagens
sobre o Cruzeiro.
Eu tinha recortes da primeira conquista internacional cruzeirense,
a Taça Libertadores de 1976. O E. me ajudou a montar o caderno de recortes. Só
que com as tantas mudanças que a família fez, de Formiga para Belo Horizonte e
daí para Contagem, esse caderno sumiu.
Jogávamos futebol com a molecada da rua em Formiga e o E. se
espelhava em Ortiz, o goleiro argentino do Atlético, à época, com bermuda longa
(o tamanho normal hoje) e faixa no cabelo. E. era o goleiro do time e usava
indumentária igual. Pegava um calção do irmão mais velho, deixava o cabelo
crescer e usava faixa. Ortiz era realmente um grande goleiro, batia pênaltis
também. Infelizmente, ele foi crucificado por causa dos dois jogos em que levou
4 gols do uruguaio Revetria. Revetria marcou os 3 gols da segunda partida (3x2)
e mais um na terceira, quando o jogo ainda estava 1x0 para o Atlético,
resultado que dava o título para o Atlético. Com o empate veio a prorrogação, o
Cruzeiro marcou mais dois e foi campeão.
A excelente convivência com estes meus dois amigos
atleticanos, que nunca discutiram futebol ofensivamente comigo, deixou-me
sempre dissociado das zombarias ofensivas que envolvem as torcidas.
Daquela boa época de adolescente, ainda tenho o chaveirinho
de Itu, que o dono da distribuidora de bebidas da esquina me deu. Ele era
cruzeirense fanático.
O "chaveirinho" de Itu tem, na verdade, quase um palmo de altura.
A cidade de Itu é conhecida como a cidade onde tudo é grande.
Ortiz faleceu em 1995, aos 48 anos, vítima de cirrose (eu
não sabia disso, mas hoje em dia, temos o Google, a enciclopédia virtual), onde é possível encontrar qualquer informação.
Ao lado, Ortiz, o goleiro do Atlético que mais influenciava a criançada, inclusive meu amigo E.P. (na foto, levando um dos gols de Revetria) Com seu calção enorme, sua vasta cabeleira, faixa e bonezinho, ele realmente chamava muita atenção. - Para ler mais sobre Ortiz, clique AQUI>
Triste observação: No clássico de domingo passado (13/09) morreram torcedores
em briga de torcidas. É algo que nunca vou entender. Porque motivo saem brigando
e matando em nome de times de futebol? Que diabos estão defendendo, afinal?
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