De todas as deficiências a surdez é a única que não causa
nenhum pesar. E por isso mesmo é a deficiência que mais sofre com o
desrespeito. Mesmo o grupo mais radical fica constrangido se tem um cego
passando, jogando sua bengala à esquerda e à direita. A turma que zoa com todo
mundo fica em silêncio e abre passagem para o cego. Se for um deficiente
físico, com muletas ou em sua cadeira de rodas, ocorre a mesma coisa. Ninguém
fala nada, ninguém faz nenhuma piadinha infame. Dão passagem e pronto. Você vê
estas pessoas que gostam de satirizar todo mundo em silêncio diante do cego
pedindo ajuda para pegar um ônibus. Ninguém faz gracinha, ninguém coloca o cego
no ônibus SC02 se ele solicitou ajuda para pegar o SC01. Se o deficiente físico
pede ajuda, estendem a mão e auxiliam. Hoje, os ônibus já estão adaptados e
recebem os cadeirantes sem necessidade de outros ajudarem, porque implantaram
elevadores automáticos em todos os coletivos. Mas, quando vem um coletivo sem
elevador, ou com o elevador enguiçado, há sempre braços fortes disponíveis para
suspender o cadeirante. E a galera que zoa com tudo e todos não faz piadinha
com o cadeirante, não coloca um chiclete no aro da roda, que serve para
impulsionar a cadeira. Se o deficiente físico usa muletas, não dá um chutinho
em uma muleta para o deficiente ficar sobre uma muleta só. Se o deficiente com
muletas tem dificuldade para subir no coletivo, não fazem piadinhas do tipo
“sobe pulando”. Nem com o cadeirante diante do elevador soltam uma algo infame tipo
“levanta-te e anda!”, como disse Jesus".
Infelizmente, com o surdo é totalmente diferente. Ao ver um
grupo de surdos conversando com sinais, a turma que zoa com tudo e todos começa
a imitar os gestos dos surdos, terminando com o dedo em riste, ou com um top
top top, ou com um círculo formado pelo indicador e polegar. E caem na
gargalhada. Quando um surdo profundo, já conhecido desta turma passa, não faltam
os gritos em voz alta: “ô, viado!”, ou “ô, filho da puta!”, “espera aí, seu palhaço!”!
O surdo não se volta, claro, e tome gargalhada. Muitas vezes o surdo precisa de
ajuda, por não estar entendendo as instruções do motorista para chegar a um
lugar que ele perguntou antes, mas dificilmente ele encontrará alguma pessoa
que o ajude. Eu mesmo já fui esquecido em sala de espera de consultório, mesmo
tendo informado à recepcionista que era surdo. O médico chamou, eu não vi (nem
ouvi, claro) e ele chamou outro. Quando ele tornou a chamar, chamou o próximo
da lista, acreditando que eu tinha desistido. Só quando fui perguntar à recepcionista porque o médico não me chamava ela se deu conta que se esqueceu
de avisar o médico que eu era surdo. Outro dia, no Banco do Brasil, com a senha
de atendimento prioritário, no momento exato que fui chamado, um idoso surgiu e
a caixa pediu para eu esperar. Atualmente uma divisória impede a visão dos
caixas. Consequentemente o idoso foi atendido, eu não vi, a caixa começou a
gritar meu número. O guarda se aproximou, e como ninguém se levantou eu saquei
que era o meu número. Ele elevou a voz comigo (os surdos sabem perceber
perfeitamente quando uma pessoa eleva a voz):
- A caixa está te chamando e você fica sentado aí?
A despeito de toda minha irritação, respondi calmo:
- Desculpe, mas ela mesma pediu para eu aguardar um pouco
enquanto atendia um idoso. E se ela está chamando, o erro é dela, porque eu sou
100% surdo.
Justiça seja feita, a bancária pediu desculpas e quando eu
estava saindo, o segurança também.
Vale o velho ditado: o que os
olhos não vêem o coração não sente. A surdez não é uma deficiência visível,
então ela não comove as pessoas. Não é a mesma coisa de um cego, com sua
bengala, sua dificuldade para transitar pelas ruas, sua dependência para
atravessar uma via. Ou o deficiente físico e suas muletas. Mesmo o cadeirante
hoje não necessitando mais de ajuda como antes, vez ou outra ele precisa de
ajuda para subir uma rampa íngreme ou passeio não rebaixado. O surdo anda
normalmente, corre, joga bola. Não depende de ninguém para pegar e entrar em um
ônibus. Mas, justamente por toda essa independência é a deficiência que não
causa nenhum pesar em ninguém e na esteira, a mais desrespeitada de todas.
Consequentemente é a que mais sofre com as zombarias. Como o problema do surdo
é muito mais de comunicação social que de dependência, muitos se acham no
direito de zombar sem mais nem menos. Poucos percebem que é uma deficiência
muito complicada, principalmente no dia a dia, quando precisamos dialogar, sem
falar nos momentos que precisamos “ouvir”, uma palestra, uma música, um filme
que não tem legendas, o grito da torcida no estádio, o choro do filho bebê, o
primeiro “papai” ou “mamãe” deste mesmo filho, a necessidade de ensinar ao
filho as palavras do mundo, alguém que chama ao longe, alguém que pede socorro,
uma peça teatral, um concerto, banda, orquestra, coral, uma conversa simples
com um desconhecido, a voz da pessoa amada...