A convivência com os surdos possibilitou a percepção de que
alguns ficavam marcados por toda a vida devido a algum ato errado. Mesmo após
anos, o fato marcante envolvendo o surdo era a referência dele. Ainda que ele
tivesse mudado, dificilmente conseguia modificar sua referência. Quando
trabalhei como um dos responsáveis pelos encaminhamentos ao trabalho de
diversos surdos, descobri que meu colega era adepto de uma “lista negra”. Nesta
lista estavam todos os surdos que haviam causado problemas no serviço em anos
anteriores. Mesmo eu falando que eram novos tempos, que teríamos as portas
abertas para todos, ele se apegava a esta lista. Às vezes sequer aceitava receber
os surdos desta lista. Ele era o “linha dura” e, estando no trabalho de
encaminhamento há mais tempo que eu, eu preferia não polemizar.
Não sei como ocorreu, mas, de alguma forma, os surdos
descobriram que eu era bem mais aberto e conciliador. Assim, quando chegavam à
empresa para solicitar trabalho, a secretária Renée perguntava:
- Você quer conversar com o Guarnieri?
Espertamente, eles respondiam:
- Quero conversar com o Jairo, primeiro.
Assim, tinham a oportunidade de expor os fatos, explicar que
já tinham solicitado trabalho ao Guarnieri, mas que ele não os encaminhava.
Um dos primeiros foi o Wendell. Ele disse que já tinha vindo
ali quatro vezes, sabendo que havia uma vaga de trabalho.
- O Guarnieri anotou meu telefone, mas não me chamou. Ele
colocou meu nome no fim da fila, por quê? Agora eu soube que a vaga ainda está
aberta!! – ele explicou, em Libras.
Como eu não imaginei que ele estivesse na “lista negra”,
chamei o Guarnieri.
- Vamos encaminhar o Wendell para esta vaga...
- É muito arriscado. O Wendell já trabalhou aqui antes. Ele
falta muito.
Mas, o Wendell disse algo concreto:
- Isto tem mais de cinco anos!!
- Mas, você ainda vende adesivos. – disse o Guarnieri. Ele
realmente conhecia muito bem os surdos. – Viaja muito. Por isso, vai faltar
muito no serviço. Não vai dar certo.
- Se eu começar a trabalhar, só vou viajar nos fins de
semana.
Muitos surdos viviam da venda de adesivos, viajando para
diversas cidades do interior mineiro. Corriam atrás do sucesso de um dos
primeiros surdos a mexer com isso: a venda de adesivos, com uma rede de
vendedores particular (também surdos). Sendo ele um dos primeiros, quando a
competitividade não existia, ele conseguiu lucrar bastante. Só que muitos e
muitos outros surdos começaram a trabalhar com o mesmo objetivo, acarretando o
excesso de demanda e a consequente queda de rendimento neste tipo de trabalho.
Como o Guarnieri disse que a vaga não foi preenchida, falei
que ele poderia encaminhar o Wendell.
Mas, disse para o Wendell:
- Estamos te dando uma nova chance. Porém, se você começar a
faltar para vender adesivos, as portas estarão fechadas de novo.
Antonella também utilizou o mesmo subterfúgio do Wendell
para falar comigo primeiro. Nesta época, porém, eu já tinha sido alertado pelo
intérprete que alguns surdos estavam confiantes que poderiam voltar a trabalhar
na empresa, mesmo após os sérios problemas que causaram. E todos os que
processaram a empresa, brigaram fisicamente, desrespeitaram os chefes, entre
outros fatos desagradáveis, também não eram recebidos por mim. Ou seja, parte
da “lista negra” era realmente de surdos que não poderiam ser aceitos.
Antonella estava na lista dos inaceitáveis. Era surda
profunda, pronunciava algumas palavras, mas a conversação só era possível
através da Libras.
- Jairo, o Guarnieri não me chama nunca. Mas, eu sei
porque...
- O que você aprontou?
- Foi muitos anos atrás, eu tinha dezoito anos. Na escola,
junto com umas colegas, fui acusada de roubar outra.
- E você roubou?
Ela ficou triste. Respondeu, com os olhos lacrimejando:
- Mas, foi uma bagunça com as colegas. Nós pegamos dez reais
para comprar cigarro... Hoje tenho mais de trinta anos, tenho uma filha,
preciso trabalhar...
Pedi à secretária que trouxesse a ficha de Antonella. Ela
não estaria na lista por causa de fatos escolares. Na ficha, encontrei algo
relacionado ao trabalho. Acusação de furto.
- Aqui diz, Antonella, que você furtou sua colega de
trabalho.
- Não, não. O que aconteceu... na sala de trabalho esta
colega deixou a bolsa na mesa. A mesa dela era perto da minha. Mas eu não mexi
na bolsa dela não. No outro dia que ela disse que eu roubei o dinheiro dela. Só
que eu não roubei...
- As outras colegas também disseram que foi você.
- Porque todas lembravam o que aconteceu na escola. E duas colegas
estudaram lá comigo. Por isso todos apontaram o dedo para mim. Mas, eu não
roubei.
- Onde você trabalhou depois que saiu daqui?
- Trabalhei em empresa particular. Fui mandada embora tem
cinco meses...
- Por que foi mandada embora?
- Não sei...
Pedi à secretária que ligasse para a empresa. Solicitasse informações
sobre a Antonella e o motivo da dispensa.
- Nenhuma reclamação contra a Antonella. Foi dispensada
devido à dificuldade com o português, não conseguindo redigir cartas para as
filiais. Os outros serviços da empresa não poderiam ser feitos por ela,
carregador era para homens, e faxina, o salário seria menor, o que é proibido.
Antonella fitava assustada a secretária discorrendo sobre
sua dispensa. A secretária conversava comigo utilizando Libras também.
- Então, está tudo certo. Você sabe, Antonella, que se você
for encaminhada e fizer alguma coisa errada, eu serei responsabilizado? E não
vai ter como eu falar nada a seu favor?
Ela respondeu que compreendia.
Guarnieri, já na sala, preparando um encaminhamento,
observou:
- As colegas não vão aceitar trabalhar com ela neste setor. Elas
estudaram juntas.
- Então, arrume uma vaga em que ela trabalhe sozinha.
- Você sabe o que ela fez? – perguntou o Guarnieri.
- Sim. Mas também conversei com o David – o intérprete que
fazia os relatórios dos problemas nos locais de trabalho – e ele explicou que a
colega acusou o furto no outro dia, sem muita certeza. De todo jeito, a
Antonella vai trabalhar sabendo que, qualquer coisa ela será responsabilizada e
sem chance de voltar a trabalhar com a gente.
Antonella ficou muito feliz com a oportunidade e me
agradeceu efusivamente.
O Enzo não estava na lista. É um caso diferente. Recebemos ligação
do setor onde o Enzo trabalhava. O chefe do setor informa:
- O Enzo não vem trabalhar a dois dias! Podem mandar outra
pessoa para o lugar dele.
O Guarnieri já estava providenciando a substituição e o
novato seria enviado na tarde daquele dia. Mandamos a secretária pedir notícias
do Enzo. Ela ligou para a casa dele, a esposa do Enzo atendeu, disse que estava
tudo bem. Não sabia por que ele não foi trabalhar. Pedimos que ele viesse
conversar conosco. O Enzo era um surdo atleta, participava de maratonas em Belo
Horizonte. Sempre o via com a camisa do Cruzeiro.
Ele chega assustado. Eu, Guarnieri e o terceiro diretor na
sala, junto com a secretária.
- Você faltou dois dias e não avisou ninguém, Enzo!! Como
você faz uma coisa dessas?? – o Guarnieri foi direto ao assunto, sem rodeios.
Antes que ele falasse alguma coisa, eu acrescentei:
- Agora a gente vai mandar um substituto lá para o seu
serviço. Você vai ter que esperar aparecer outra vaga.
- Não! Não pode! Como eu vou fazer? Preciso do trabalho. Telefona
para meu chefe, diz que eu vou trabalhar hoje!!
- Por que você faltou sem avisar??
- Minha esposa caiu na escada. Não podia nem andar. Machucou
muito a perna. Por isso que eu faltei. Eu estava ajudando ela lá em casa...
- Caiu na escada??
- É, caiu!! – e levantou-se e dramatizou a queda – Ela foi
andando assim e a escada pequena, três degraus, ela pisou em falso, caiu de mau
jeito em cima da perna... Ficou muito ruim. Não conseguia andar...
Nós três diretores nos entreolhamos, com vontade de rir. A secretária
baixou a cabeça. O Enzo suplica:
- Por favor, Jairo. Liga lá para o Santiago – o chefe dele –
diz que eu vou hoje, trabalhar. Não vou faltar mais não.
- O Guarnieri já mandou outra pessoa... Se o seu chefe
gostar desse novato, não podemos fazer nada...
- Que dia o novato vai começar? – perguntou o Enzo,
desesperado.
- Hoje, às 13 horas. Daqui a quarenta minutos.
- Liga para o Santiago... vou hoje, agora!!
A secretária liga. Diz que os diretores estão pedindo para
ele reconsiderar a substituição do Enzo e aceita-lo de volta. O Santiago
reluta, mas acaba aceitando.
Falei com o Enzo:
- Vá para seu serviço rápido. Você tem que chegar lá antes
do novato começar a trabalhar. Fale para o novato vir aqui conversar com o
Guarnieri.
- Você tem que chegar lá no seu serviço em meia hora –
brincou o Guarnieri. -
É melhor correr.
Às 13:05 h a secretária nos reúne e informa:
- O Santiago acabou de ligar. Informou que o Enzo chegou todo
suado. Parece que foi correndo, daqui até lá. O Enzo agradeceu ao Santiago. Está
trabalhando normalmente...
Nós rimos muito. Soubemos depois que ele, realmente, foi
correndo da nossa sede até o local de serviço em trinta e dois minutos. Provavelmente
a esposa nunca caiu da escada. Logicamente, ela teria comunicado isso, quando a
secretária ligou pedindo informações sobre a ausência do Enzo no trabalho.
Dos surdos da “lista negra” do Guarnieri, que eu insisti em
dar uma nova chance, apenas dois deram problemas novamente.
Wendell, Antonella e Enzo nunca deram mais problemas.
Exceto o meu, todos os demais nomes estão trocados, por
motivos óbvios.