Quando cheguei em Formiga para passar o feriado de 1º de
Maio (que caiu numa sexta-feira), encontrei o Ivan meio incomodado:
- Pô, você devia ter avisado que vinha. O pessoal está todo
indo para a roça.
- Resolvi de última hora... Prá roça de quem vocês estão
indo?
- Do vô do Edson. Só que o vô dele não mora lá não. A roça
fica mais é fechada mesmo.
O Tonho se aproxima, dá o toque:
- Vamos falar com o Edson e você vai com eles. Eu vou namorar
e já tenho as noites todas preenchidas com a Janete (com quem ele viria a se
casar). Senão você vai acabar ficando aqui sem nenhum companheiro.
Claro que o Edson aprovou minha companhia. Disse que eu
deveria comprar uma garrafa de vinho; ajudar a comprar o arroz, não esquecer de
levar cobertor e blusa que lá estaria frio. Despedi do Tonho dizendo que nos
veríamos novamente no domingo à tarde.
Fui em casa com o Ivan, peguei as coisas. Passamos no
armazém (ah, sim, ainda existem armazéns em Formiga) e compramos vinho e arroz.
Fomos para a casa do Edson, onde ele estava arrumando as coisas necessárias na
bicicleta. Pegou uma galinha (viva) também. Foi lembrando de um monte de
coisas, eu e o Ivan mais atrapalhando que ajudando, fazendo piada com tudo.
Faca, colher, garfos e umas panelas. Ele tinha uma espingarda de chumbinho, que
estava levando para caçar passarinho, codornas ou rolinhas, para a gente assar.
Eu disse que iria aproveitar para atirar com uma arma pela primeira vez na vida
(que pena que lá eu esqueci completamente disso!). Arrumamos muita coisa na
bicicleta, tomamos café e ficamos fumando do lado de fora da casa do Edson,
aguardando os demais companheiros.
- Quem mais?
- O Amarildo e o Walter.
Não conhecia o Walter. O Edson que era mais amigo dele,
disse que era boa gente.
Eles chegaram juntos e o Amarildo foi logo falando:
- Você conhece a Enizinha (único nome fictício em todo este
relato)? – riu e sem esperar resposta complementou – É mais uma da minha lista.
Todos rimos. O Amarildo tinha e fazia a fama de pegador. Ele
tinha 19 anos à época. O Edson também. O Ivan era “de menor”, 17 anos, eu tinha
21 e o Walter era o mais velho, 22 anos. O Walter foi apresentado, o pessoal
riu do espanto dele ao saber que eu era surdo. Meus três amigos sabiam o alfabeto
manual dos surdos. Conversavam comigo normalmente. Companheiros bons, com quem
passava horas e horas conversando amenidades. O Amarildo, a despeito de muitas
conversas sobre mulher, também debatia assuntos diversos com conhecimento.
Pegamos o caminho para a Cerâmica, cruzando a ponte de
madeira sobre o Rio Mata Cavalo. O Edson morava ali perto. Revezando para
empurrar a bicicleta, que com toda tranqueira que o Edson inventou de levar
ficou pesada. Passamos a Cerâmica, pegamos asfalto. Fui conversando com o
Walter, informações de ambos, sobre trabalho, família, exército, etc. Ele tinha
um excelente movimento labial e também viu como os meus amigos conversavam
comigo (mesmo usando o alfabeto, eles falavam em voz alta, com vagar). Os três,
Amarildo, Ivan e Edson entraram numa mata densa para ver se conseguiam matar
algum passarinho que serviria de refeição. Chegaram com uma rolinha tão pequena
que eu até fiquei com dó:
- Poxa, pessoal, se depenar esta rolinha não vai ficar
nada...
Rimos. Jogaram fora, com dó. Para nós era importante matar
os passarinhos somente para comer. Eu era totalmente contrário a matar
passarinhos apenas por matar. Acho que só o Amarildo era meio contra o que eu dizia, pois foi o único a não se
manifestar a favor. Mas, conhecedor da minha defesa acirrada de algumas
convicções, não polemizou. Eu fui carregando a espingarda, ela já estava
descarregada, e brincando, lembrando que eu e o Walter conversamos sobre o
exército. Eu expliquei que fui dispensado devido à deficiência. Pus a espingarda
no ombro e alterei a voz:
- Ordinário, marche! Esquerdo, direito, esquerdo, direito...
Conversamos sobre exército, que eles serviram, menos o Ivan,
claro. Disseram que, apesar de puxado, é bom, há companheirismo e aprendizado,
principalmente sobre armamento. Eu falei que se não tivesse ficado surdo,
provavelmente seguiria carreira nas Forças Armadas, porque eu gostava muito do
Exército e da Marinha, mas não da Aeronáutica. Desde essa época eu já sabia de
cor, os hinos brasileiros, o Hino Nacional e de cada uma das Forças Armadas.
Gostava em especial da Canção do Exército, “Nós somos da Pátria a guarda, fiéis
soldados, por ela amados...”, que eu ouvia sempre nos desfiles de 7 de
Setembro. O bom de cidades do interior é justamente a possibilidade de participar
de todas as festas cívicas. Os desfiles ocorriam no centro da cidade, era só
uma caminhada de dez minutinhos e estava lá. Eu comecei a cantar a Canção do
Exército e o pessoal se espanta:
- Como você sabe essa música?
- Ouvi quando era
mais novo. Minha memória auditiva é espantosa. Lembro de muitas e muitas
músicas que já ouvi.
(Relato em 4 capítulos! Continua AQUI)
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